STF suspende portaria do trabalho escravo

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FONTERedação JOTA
Para a ministra Rosa Weber a “escravidão moderna” é mais sutil, configurada até mesmo por diversos constrangimentos econômicos, e não necessariamente físicos

A ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber suspendeu nesta terça-feira (24/10) os efeitos da portaria editada pelo governo Temer para caracterizar trabalho análogo ao de escravo. A ministra concedeu liminar pedida pela Rede Sustentabilidade ao entender que a norma representa aparente retrocesso, limita ações de fiscalização, debilita a proteção dos direitos que se propõe a proteger, e  dificulta a política pública de combate ao trabalho escravo. (Leia a íntegra da decisão)

Para Rosa Weber, a nova regra “vulnera princípios basilares da Constituição, sonega proteção adequada e suficiente a direitos fundamentais  e promove desalinho em relação a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.” A ministra ressaltou que a “escravidão moderna” é mais sutil, sendo que configurado até mesmo por diversos constrangimentos econômicos, e não necessariamente físicos.

O partido ingressou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 489 requerendo que o Supremo Tribunal Federal declare a inconstitucionalidade da portaria do Ministério do Trabalho n° 1.129 que alterou as regras para fiscalização do trabalho análogo ao escravo. (leia a íntegra da ação)

Em sua decisão, a ministra afirmou que  a “Portaria do Ministério do Trabalho nº 1.129/2017 tem como provável efeito prático a ampliação do lapso temporal durante o qual ainda persistirá aberta no Brasil a chaga do trabalho escravo”, além de comprometer  resultados alcançados durante anos de desenvolvimento de políticas públicas de combate à odiosa prática de sujeitar trabalhadores à condição análoga à de escravo.

“A presença do trabalho escravo entre nós causa danos contínuos à dignidade das pessoas (art. 1º, III, da CF) a ele submetidas, mantendo a República Federativa do Brasil distante de alcançar os objetivos de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, da CF), alcançar o desenvolvimento nacional (art. 3º, II, da CF), erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, III, da CF) e promover o bem de todos (art. 3º, IV). Tais danos são potencializados pela ausência de uma política pública eficiente de repressão, prevenção e reparação”, escreveu.

Segundo a ministra,  “a efetiva proteção ao trabalho concretiza um meio de assegurar ao ser humano um patamar mínimo de dignidade: a defesa do direito do trabalho é indissociável da própria defesa dos direitos humanos.”

Rosa Weber afirmou ainda que há risco de consequências internacionais para o país. “Vale ressaltar que, a persistir a produção de efeitos do ato normativo atacado, o Estado brasileiro não apenas se expõe à responsabilização jurídica no plano internacional, como pode vir a ser prejudicado nas suas relações econômicas internacionais, inclusive no âmbito do Mercosul, por traduzir, a utilização de mão-de-obra escrava, forma de concorrência desleal.”

De acordo com a relatora, “o Estado brasileiro tem o dever, imposto tanto pela Constituição da República quanto por tratados internacionais de que signatário, de manter política pública eficiente de combate à redução de trabalhadores à condição análoga à de escravo. “A atuação positiva do Estado decorre do direito posto, não havendo espaço, em tema de direitos fundamentais, para atuação discricionária e voluntarista da Administração, sob pena, inclusive, em determinados casos, de responsabilização pessoal do agente público responsável pelo ato, a teor do art. 11, I, da Lei nº 8.429/1992.”

Rosa Weber ataca pontos específicos da portaria, como a necessidade de aval do ministro do Trabalho para a inclusão de nomes na chamada lista suja do trabalho escravo, classificando a previsão como medida administrativa que limita e enfraquecem as ações de fiscalização, ao contrário de promoverem a diligência necessária para a adequada e efetiva fiscalização.

“Ainda constituem medidas que condicionam a eficácia de uma decisão administrativa a uma vontade individual de Ministro de Estado, que tem notório viés político. Lógica que inverte a postura técnica pela postura política em matéria de conteúdo técnico jurídico.

A relatora apontou “aparente retrocesso” na regra do parágrafo único do art. 5º, quando estabelece que “decisões administrativas irrecorríveis de procedência do auto de infração, ou conjunto de autos de infração, anteriores à data de publicação desta Portaria valerão para o Cadastro após análise de adequação da hipótese aos conceitos ora estabelecidos.”

“Verifica-se com essa regra a configuração de uma situação de anistia aos empregadores, ao se exigir que a análise da ilicitude do ato seja feita à luz de um novo quadro normativo, de uma nova hipótese fática. Tal regra afirma a impunidade dos ilícitos passados, conduta veementemente condenada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que impôs ao Brasil recomendações no sentido contrário ao prescrito na regra. Impõe, portanto, situação de clara afronta ao decidido pela CIDH, o que significa o não cumprimento deliberado da sentença imposta ao Estado”, disse a ministra.

Um dos autores da ação da Rede, o advogado Daniel Sarmento afirmou que “a portaria era uma violação grosseira à dignidade humana, editada para assegurar a impunidade”. “A liminar da Ministra Rosa foi uma vitória histórica da cidadania contra o lado mais obscuro da política e da vida nacional”. disse.

Ao Supremo, o partido argumentou que as novas regras ferem os princípios da dignidade da pessoa humana, da proibição do retrocesso social, da proporcionalidade e da eficiência; os direitos fundamentais à liberdade, à igualdade, ao acesso à informação, e a não receber tratamento desumano ou degradante; e os objetivos fundamentais da República.

De acordo com a ação, a norma restringiu dramaticamente o conceito de trabalho análogo à escravidão, impôs inúmeras exigências novas para a validade do respectivo processo administrativo e terá, na prática, efeitos similares ao de uma anistia, contribuindo ainda mais para a impunidade nessa área.

“Trata-se do risco de comprometimento de uma relevante política pública, voltada ao enfrentamento de um dos mais graves problemas sociais do país: o trabalho escravo. Mais ainda, cuida-se do risco de que, nesse ínterim, a dignidade humana e os direitos fundamentais de integrantes dos grupos sociais mais excluídos sejam gravemente vulnerados. É preciso agir com rapidez, para impedir que se consume tamanha afronta à Constituição”, diz o texto elaborado pela Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ, que requer uma liminar para suspender os efeitos da norma.

Segundo a legenda, a portaria foi editada dentro de uma articulação do governo para barrar o andamento na Câmara de denúncia oferecida pela Procuradoria Geral da República contra o presidente Michel Temer e ministros por organização criminosa. O objetivo da nova regra seria agradar a bancada ruralista.  O texto cita que o ministro da Agricultura Blairo Maggi, “principal representante dos interesses ruralistas no governo – deixou claro que as novas regras foram o fruto de barganha política entre o presidente da República e o grupo bem organizado de parlamentares ligados ao agronegócio”.

“Na hipótese, tem-se a espécie mais grave de abuso de poder: o ato praticado não visou a promoção de qualquer finalidade pública, mas o atingimento de objetivo privado do governante: impedir a admissão de uma ação penal na Câmara dos Deputados, e com isso manter-se no poder”.

Para a sigla, a plausibilidade do direito invocado é corroborada pelas manifestações de praticamente todos os atores sociais relevantes no campo do combate do trabalho escravo no Brasil, que, em uníssono, afirmaram o caráter nefasto do ato normativo impugnado e sua franca incompatibilidade com a Lei Fundamental.

As novas regras foram duramente criticadas pelo Ministério Público Federal e também entidades da sociedade civil. A portaria do governo altera a forma como se dão as fiscalizações, além de dificultar a comprovação e punição desse tipo de crime. Fica definido ainda que apenas o ministro do Trabalho pode incluir empregadores na Lista Suja do Trabalho Escravo, que dificulta a obtenção de empréstimos em bancos públicos.

A Rede afirma que o ato normativo cria obstáculos e restrições injustificáveis para o combate ao trabalho escravo prejudicando gravemente o enfrentamento dessa verdadeira vergonha nacional. A sigla diz que a intenção de atribuir ao Ministério do Trabalho ao aval para inclusão na ‘Lista Suja”, incluindo um filtro político na questão, “haja vista a natureza da função ministerial, muito mais sujeita à lógica e às injunções da política.”